terça-feira, 26 de maio de 2015

Conto - Mentiras Complacentes


Acordei pela manhã dizendo “Olá Mundo, hoje teremos um dia diferente e melhor que ontem!”, mas novamente estava enganado, tentando subjulgar minha mente racional, empurrando goela abaixo o auto-convencimento de que sempre está tudo bem (e deve estar tudo bem) e que vamos todos sorrir ao final!

O magistral ensinamento que propus encontrava-se impresso em uma versão muito deplorável de um livro de auto-ajuda comprado em uma caríssima livraria no Aeroporto do Galeão no Rio.

Não é assim, a vida é muito complexa para que tenhamos ensinamentos de alguém que se sente feliz e realizado porque seguiu alguma receita mágica e que diz que tais ensinamentos melhoram nossa vida, capaz de mudar tudo em um passe de mágica se seguido todos os passos corretamente e à risca, professado em letras como uma receita de bolo. Quantos escritores de auto-ajuda são perfeitos, verdadeiras encarnações de Jesus-Cristo, Buda, Alá, e qualquer homem perfeito e que têm muito a ensinar e vender livros para as pessoas desesperadas por um conforto psíquico? Destino de meu livro: Calço para minha mesa bamba no chão.

Liguei para Alfredo, não aguentava mais ficar sozinho neste buraco que é meu apartamento. Todos os dias o meu lar seria o melhor lugar do mundo mas, especificamente hoje, meu lar me sufocava ao invés de me acalentar.
Alfredo seria uma ótima companhia. Ele tinha um jeitão louco, um líder que sempre ganhava as conversas e persuadia quem quer que fosse, com um jeitão bem humorado, de experiências de vida e histórias malucas.

- Alf? E aeeeee, como é que você está?... Ah, legal, bom, o que acha de sairmos pra beber alguma coisa e conversar um pouco?

Em quarenta minutos Alfredo estava lá embaixo esperado com seu Uno Mille vermelho 1997, e como sempre vinha com um som no último volume, acompanhando seu eterno gosto por Rock Setentista. Entrei no carro, não ouvia a voz dele enquanto me batia no ombro e me cumprimentava. Era Mick Jagger a todo o vapor cantando Brown Sugar. O estado do carro por dentro era lastimável. Pisei em alguma coisa gosmenta e pegajosa, em meio a pacotes de maços de cigarros amassados, papéis de pão, propaganda e tudo quanto é porcaria. O carro de Alf era algo como uma lata de lixo velha, mas bem conservada por fora e superlotada de lixo por dentro e eu já estava me sentindo como parte de todo este lixo, sendo eu mesmo também um lixo.

Um cheiro forte de cigarro exalava de Alf como se ele tivesse fumado o maço inteiro de uma só vez. Usava uma jaqueta Jeans surrada que parecia deixá-lo ainda mais magro do que era. Sorrido e me apertando no ombro, ele abaixou um pouco o som e se virou para mim, agitado como de costume.
- Fião, tava só esperando tu me ligar pra esfriar a merda da minha cabeça!  Pela madrugada cara, só briga na porra da minha casa. Você acredita que a Manuela teve a pachorra de me dizer? Que eu sou imaturo e infantil como um adolescente de quinze anos!

- Sério Alf? Você não falou que é só o corpinho que parece ter quinze anos?

- Bandido filha-da-puta que você é!

E rimos... verdadeiramente não importava o quão catastrófico fosse o assunto, sempre tirávamos um grande e inevitável sarro da situação porque no fim era isso mesmo, um jeito de se manter sóbrio e com a sanidade mental controlada frente aos problemas da vida.

- Alf, vamos naquele buteco lá de esquina com a Treze, parece que vai tocar uma bandinha cover de Led Zeppelin, vamos curtir! – Disse todo empolgado e querendo dar uma virada no sentimento de Alf, muito embora ele nunca transparecesse que estava mentalmente mal.

- Cara, vamos sim, tá foda, vou até desligar o celular pra Manuela não me encher a paciência!
E assim fomos... Um bar sombrio, com muita fumaça densa de cigarros há muitas horas fumados e que somente continuavam a se acumular no ar, com um som abafado e mesas grudentas. Para nós era extremamente aconchegante, receptivo, confortável...

Sentamos no balcão mesmo, até então vazio e pedimos uma dose de whisky barato. Alf deu uma pequena golada e virou-se para mim com um semblante pesado e cansado, sua voz arrastada:

- Sabe, hoje eu não vou disfarçar nada pra você, a coisa tá ruim mesmo, pareço sempre estar animado e descontraído mas... a vida tem me consumido de tal forma que não sei mais o que fazer para melhorar...

Fiquei meio impressionado. Alf nunca havia estado tão para baixo, normalmente ele era uma pessoa de personalidade despojada, alguém que influencia aos demais e se mantém na liderança dos assuntos, alguém que sempre está disposto a dar seus conselhos, mesmo que sejam os mais loucos e inesperados. Desta vez senti que era ele quem precisava de bons conselhos.

- Algo com Manuela? – Perguntei sem olhar em seus olhos.

- Não é só com ela... é com tudo. Trabalho em uma merda de lugar, doze horas por dia, todos os dias!
Tem noção do que é ter apenas os domingos para sobreviver? Mas domingão é dia de ralar em casa! Minha filha está dando trabalho na escola e Manuela acorda reclamando da vida e vai dormir ainda reclamando, como se tudo fosse uma grande merda que eu sou o principal responsável por enfiar nela toda a desgraça que acontece na vida. Não tenho grana para pagar este whisky, estou devendo até pro meu chefe, não posso nem mesmo vender meu carro porque está com toda a porra de documentação atrasada! O que me diz amigo? O que me diz?

Alf suava como um velho nervoso e estava verdadeiramente aborrecido. Eu não sabia o que poderia dizer a ele. Tentei parecer animador, consolador... eu estava desanimado na maioria de meus dias fúteis mas hoje eu precisava ajudar Alf, pois sua fortaleza e seu jeito auto-suficiente que sempre me dava conselhos tinha caído por terra.

-Alf, sei lá, não dá pra tentar alguma coisa? Fazer algo diferente? Dar uma viajada, espraiar um pouco...

- Claro... isso seria algo como um remédio paliativo, não apagaria tudo definitivamente.

- Não é o caso de dar um tempo com Manuela e viver sozinho?

- Tenho uma filha que precisa de mim e não vou deixa Manuela sozinha pra depois ser o vilão, entende?

- Mas será que não está na hora de pensar em você Alf?

- Será que você não ENTENDE? – Alf deu um soco na mesa do balcão e deixou o copo cair acidentalmente. Senti-me inútil e surpreso com a reação dele. Todo o movimento parou ao redor e fixei meus olhos nos olhos dele, que se encheram d´água. Jamais imaginaria vê-lo desta maneira, nem passava pela minha cabeça o desespero contínuo que havia sofrido e que eu nunca havia percebido.

Devia fazer muito tempo que ele sentia-se assim, devia estar guardando tudo isso dentro de si até o momento de agora, onde foi exposta uma situação emocional bem delicada e Alfredo estava somente esperando uma oportunidade para  gritar a plenos pulmões um pedido de socorro!

- Desculpe meu amigo – Disse Alfredo com uma expressão verdadeiramente triste. - Há ainda mais para lhe contar e falta-me coragem de me abrir. Vou tomar um ar...

E saiu em direção a porta. Fiquei olhando para Alfredo sem dizer uma só palavra, sem lhe puxar de volta para conversarmos. Talvez por sentir que ele realmente precisava tomar um ar, fumar um cigarro e respirar fundo antes de iniciar seu longo desabafo. Posteriormente arrependi-me por toda minha vida por deixá-lo sair pela porta do bar.

A sequência de acontecimentos foi algo muito rápido, como um piscar de olhos. A banda iniciou os primeiros acordes de um clássico de Led Zeppelin. Quando dei uma golada em meu whisky escutei um alvoroço das pessoas que estavam do lado de fora do bar. Muitos começaram a sair, alguns gritos abafados eram ouvidos. Algo havia acontecido. Esse algo era com meu amigo Alfredo.

Compareceram muitas pessoas em seu velório. Muitos amigos influenciados por Alfredo. Seu grande e louco líder havia partido. Seus velhos pais, sua esposa Manuela e sua filhinha, choravam desconsoladamente. Era possível sentir o amor de todas estas pessoas por ele, inclusive o meu amor, um amor de amigo, verdadeiro e de compaixão.

Ele não sabia o quanto era amado, apesar de todos os seus defeitos. Não imaginava o quanto faria falta para sua família e amigos. Quantos jargões, ensinamentos e lições de vida ele deixou.  Ele não podia ver pelo ângulo de sua importância, estava preso por uma armadura de proteção de sentimentos, sempre inabalável e que, quando esta barreira rompeu-se, toda a delusão veio à tona, tudo o que precisava ser desabafado veio de uma vez e ele enlouqueceu.

Alfredo jamais poderia imaginar que seria acolhido e que teria alternativas neste mundo. Por uma fração de segundos ele esqueceu-se de toda a sua vida quando, segundo testemunhas, voluntariamente pulou na frente de um caminhão de cimento em alta velocidade pela avenida, que o matou instantaneamente.

Particularmente não gosto desta versão. Prefiro pensar que seus sentimentos o traíram e que houve algum erro mental, alguma confusão que o levou para um lugar onde ele não deveria estar. Ele poderia ter infartado ou ter desmaiado. Que diferença faria? Daria no mesmo, pois a causa da morte na verdade foi a sua angústia. Porque afinal, muitas pessoas dizem que são isso ou aquilo, sintetizam supostas verdades e receitas de sucesso, criticam aqueles que supostamente estão fazendo algo de errado com suas vidas. Como meu livro que está calçando minha mesa! Como Alf e seu louco jeito de líder inabalável.

Mas o que estas pessoas são na realidade? O que está escondido no mais profundo de seu ser? O que verdadeiramente se passa em suas mentes? Muitas verdades quando reveladas podem ser surpreendentes. Muitas mentiras também.